Imagine um sistema político em que os partidos mais votados das últimas eleições (PT, MDB, PSDB e PP) estão todos envolvidos em escândalos de corrupção. Imagine, também, que uma operação policial com ampla repercussão escancarou, para o imaginário popular, diversos esquemas de desvio de recursos públicos na casa dos R$ 12 bilhões, condenando mais de 160 pessoas, entre empresários e políticos do alto escalão. Além disso, empresas como JBS e Odebrecht, embaraçadas em denúncias, fizeram doações milionárias para os principais presidenciáveis na eleição de 2014. Esse ambiente de descrédito generalizado aponta para a erosão dos valores democráticos e cria a expectativa de que um salvador da pátria seja a solução para o pleito que se aproxima. Analistas, no entanto, duvidam do sucesso de iniciantes - ou “outsiders” -, levando em conta que as estruturas do modelo representativo permanecem as mesmas.
As instituições políticas brasileiras já vêm sofrendo um desgaste histórico de confiança, atestado em pesquisas da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e DataFolha. As Forças Armadas e o Poder Judiciário, por outro lado, estão no topo da confiabilidade. Esse dado explica o protagonismo político que têm tido diante da opinião pública generais do alto comando do Exército e mesmo os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), contrariando uma máxima do mundo jurídico de que "juiz só fala nos autos".
Polarização recorrente desde a redemocratização, PT e PSDB representam a divisão entre esquerda e direita, a grosso modo. Contudo, sem o ex-presidente Lula (PT) na disputa, o deputado Jair Bolsonaro (PSL) e a ex-senadora Marina Silva (Rede) passam a liderar as intenções de voto, seguidos do ex-governador do Ceará Ciro Gomes (PDT) e do ex-ministro do STF Joaquim Barbosa (PSB).
Vencedores das últimas quatro eleições, os petistas têm dificuldades em transferir a popularidade do ex-presidente Lula, que chegou a 37% das intenções de voto antes de ser preso. Os possíveis candidatos pelo PT - Fernando Haddad e Jaques Wagner - não conseguem um desempenho expressivo. Ambos já foram alvos de denúncias por envolvimento com corrupção e acabam caindo na categoria dos iniciados.
Do outro lado, o ex-governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), que já concorreu à presidência em 2006, tendo 39 milhões de votos no primeiro turno, não passa da casa dos 5%. Alckmin está sob a mira da Operação Lava Jato e pode se tornar réu a qualquer momento. No caso tucano, o declínio também se deve às denúncias sofridas pelo senador mineiro Aécio Neves, um dos que despontou como "voz da moralidade", em 2014, e que acabou abatido pelo Ministério Público, pelo Judiciário e pela opinião pública.
Insatisfação latenteO bom desempenho de figuras como Marina Silva, Bolsonaro e Joaquim Barbosa nas pesquisas de intenção de voto, segundo cientistas políticos, é a confirmação de que há uma insatisfação latente com a política tradicional.
"O fenômeno já estava aí, porém havia a ausência de um nome que pudesse canalizar a insatisfação com os políticos. Uma interpretação possível é que o eleitor está olhando para esses nomes e pensando que a solução dos nossos problemas está fora do modelo tradicional", avalia o professor de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP), Glauco Peres da Silva.
Parte de uma perspectiva essencialmente pragmática que nomes como o do senador Álvaro Dias (Podemos), com meio século de carreira política, queiram passar a imagem de movimento, de novidade, pegando carona na tendência do presidente francês Emmanuel Macron. Essa busca de diferenciação também é o caso de Bolsonaro, no Congresso há mais de 20 anos e cujos filhos também estão em casas legislativas pelo País. O presidenciável Paulo Rabello de Castro (PSC) foi presidente do BNDES até então, fazendo parte da gestão de Michel Temer e Marina Silva, indo para sua terceira campanha presidencial, foi senadora e ministra do Meio Ambiente no governo Lula.
O jogo democrático, praticado por políticos profissionais, tem sido visto com maus olhos. É como se o modelo brasileiro de democracia tivesse chegado no seu limite. A Operação Lava Jato, nesse sentido, é um dos fatores determinantes para essa crise de representação. Em artigo publicado na Revista Piauí, o cientista político Celso Barros Rocha analisa a conversão da Lava Jato em força política, cujo objetivo implícito foi "atacar o sistema político como um todo". "Longe de dar poder a um outsider, a turbulência política no Brasil derrubou Dilma Rousseff para promover uma extraordinária recomposição do sistema", acredita.
Celso Barros Rocha sinaliza que os partidos políticos vinham perdendo legitimidade, mas a alternativa a eles foi, por um bom tempo, o desinteresse e a abstinência total. Agora eles precisam lidar com a concorrência de "movimentos populistas agressivos". “A bomba atômica da Lava Jato tornou a política partidária brasileira inutilizável pela indignação popular. E, como seria de se esperar, a indignação popular, sozinha, não é suficiente para construir partidos: é bem mais fácil fazer uma passeata ou um linchamento com a indignação popular do que uma aliança partidária ou uma composição de interesses semelhantes”, esclarece.
O professor Glauco Peres da Silva observa que, para todas as profissões, espera-se que profissionais deem conta do recado e sejam melhores do que amadores. "Isso serve para médicos, advogados, jornalistas. Por que seria diferente para os políticos? Atribuir a uma questão de índole a causa da nossa crise institucional é um equívoco", pondera. O analista reitera que o presidencialismo de coalizão demanda muito, exige um político hábil, capaz de articular bem e que uma pessoa de fora pode ser imprevisível.
Esse desânimo do eleitorado com a política em geral se deve, também, ao fato de que não conseguimos criar lideranças capazes de propor uma alternativa viável. "Essa descrença também foi causada pela velocidade com que o sistema partidário foi atacado e destruído. As condenações da Lava Jato colapsaram o sistema partidário. Não que não merecesse, mas o sistema entrou em crise e não houve tempo de recuperar", explicou.
É paradoxal e sintomático que alguém como a ex-presidente Dilma Rousseff, que buscou passar uma imagem de "gerente" e "durona", tenha sido repelida no Congresso. No sentido oposto, políticos experimentados, tradicionais e impopulares, como o presidente Michel Temer (MDB), alvo de denúncias consistentes, se esquivam da Justiça.
Os outsiders estão em alta na corrida presidencial, mas em 2014 os maiores partidos elegeram as maiores bancadas para o Congresso nacional. E o fundo eleitoral de R$ 1,7 bilhão, a ser usado esse ano, tende a manter a maior parte dos atores políticos do Legislativo, o que solidifica as estruturas tradicionais. Formar coalizão nesse contexto é uma tarefa ainda mais difícil.
O escritor francês Jacques Rancière, no livro Ódio à Democracia (2005), imagina que "o bom governo democrático é aquele capaz de controlar um mal que se chama simplesmente vida democrática". "A aflição dos indivíduos democráticos é a dos homens que perderam a medida pela qual o 'Um' pode se conciliar com o múltiplo e os 'uns' podem se unir em um 'todos'", analisa, frisando que esse poder central, na democracia, é inevitavelmente assimétrico. A ideia, no caso brasileiro, é buscar um consenso, uma forma de unificação que permita o restabelecimento do princípio democrático onde o bem-estar social seja prioritário.
Por: Ulysses Gadêlha, da Folha de Pernambuco