Em seu panfleto “18 de Brumário de Luis Bonaparte”, Karl Marx afirma que a história se repete, a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa.
Desde a chamada “abertura democrática” que pôs fim à Ditadura Militar de 1964, cada passagem de março a abril é marcada por manifestações de repúdio aos anos de chumbo e de comemoração pela democracia conquistada.
Não é que se pretenda aniquilar a importância da sucumbência da tragédia ditatorial, mas a farsa democrática à qual fomos acostumados não pode permanecer absoluta, sob pena de jamais alcançarmos, de fato, a condição de uma República Democrática.
Tornar visível a opressão é um dos mais significativos desafios dos militantes sociais. Aceitar que nosso sistema democrático passa ao largo de uma democracia real é o passo primeiro para sua consolidação.
Não vivemos na democracia, embora também não estejamos submetidos às truculências de um Estado de exceção como o que antecedeu o atual sistema político. Pôr fim à Ditadura, aprovar uma Constituição que opta pelo Estado Democrático de Direito e preserva as liberdades civis, conquistar as eleições gerais e diretas são vitórias inestimáveis para os que defendem o poder sob domínio da maioria, ou seja, a democracia.
Entretanto, em tempos de debate sobre a Reforma Política e em um clima de alerta nacional quanto à violência que assusta nossas vidas, é fundamental que a luta pela democracia reocupe as mentes e as ruas.
Não é democracia um sistema em que, apesar de todos poderem votar, poucos podem analisar com autonomia e consciência o exercício do voto. Não é democracia o que se expressa pelo comparecimento às urnas de dois em dois anos e inexistência da participação cidadã em todos os outros dias. Não é democracia um poder que se limita a poucos, cujas informações são patrimônio de poucos e cujo direito à comunicação é exclusividade de poucos. Não há democracia quando os direitos básicos à saúde, à educação, à alimentação e à vida são negados à maioria.
Portanto, nesta passagem de março a abril, mais que relembrar a Ditadura Militar e saudar sua derrota, é preciso escancarar a obviedade de que ainda nos faltam muitos passos para alcançarmos a condição de nação democrática. E a Reforma Política que discutimos deve ter na democratização dessa democracia seu principal objetivo.
Para além de ajustes no sistema eleitoral, transformações radicais – aquelas que se dão na raiz – devem ser feitas em nosso sistema político. A República, como “coisa pública”, precisa ganhar corpo e se entregar à vontade de seus membros. Instrumentos de participação direta que aproximem o povo da política e, portanto, a maioria das decisões que dizem respeito a todos, compõem um rol de possibilidades no qual devemos apostar. Mais que isso, o extermínio da corrupção e a superação da representação dos interesses de pequenos grupos econômicos, famílias e indivíduos é o único caminho que pode nos elevar ao patamar republicano.
A democratização dos meios de comunicação, sobretudo, não para que simplesmente o Governo exponha suas idéias, mas para que, principalmente, a diversidade de opiniões existentes na sociedade tenha espaço para se pronunciar, é um requisito indispensável a um sistema que defende para todos o direito a falar e ser ouvido.
Por fim, ajustar as contas de nosso passado trágico e permitir ao conjunto da sociedade o conhecimento de sua própria história é uma exigência para os que desejam sepultar seus fantasmas autoritários e avançar para a democracia real.
A tese de que vivemos em uma sociedade democrática só está de pé porque comparamos a situação atual com os anos que nos antecederam. Nossa comparação deve ser com os anos que virão e com o tipo de sociedade que desejamos construir.
É por isso que neste 1o de Abril, a União Nacional dos Estudantes realizará um ato em memória de todos os estudantes e lutadores que tombaram no combate aos anos de chumbo, mas, para além disso, exigirá a abertura dos arquivos da Ditadura Militar, dívida que nossa República ainda não foi capaz de pagar, talvez pela sapiência de sua fragilidade.
O ato acontecerá na Praia do Flamengo, 132, endereço da histórica sede da UNE tomada e queimada no 1o de Abril de 1964 e que, desde 1o de Fevereiro deste ano, encontra-se ocupado por estudantes de todo o país. Será o momento não apenas de lembrar, mas de reivindicar uma democracia verdadeiramente para todos, na esperança de que nossa Reforma Política venha para satisfazer os anseios da maioria e não os interesses dominantes.
Do contrário, restaremos como a nação da incompletude. Dos recorrentes ajustes e conciliações. Da eterna meia verdade, meia liberdade, meia República.
Em defesa da democracia por inteiro, denunciemos na data de nossa tragédia a atualidade de nossa farsa. E, a partir daí, sigamos em frente, sem fantasmas e sem meias palavras, “semeando a liberdade em cada coração”.
Louise Caroline, Vice-Presidente da UNE
(Publicado originalmente em 31 de março de 2007)
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