O que uma Constituinte pode fazer que uma lei normal ou emenda à Constituição não pode? Há partes da Constituição que estão além dos instrumentos de que o Congresso dispõe para legislar. Não podem ser alteradas nem por emenda constitucional. São as chamadas "cláusulas pétreas" do artigo 60: república e federação; separação de poderes; voto universal, secreto, direto e periódico; e direitos e garantias individuais.
O leitor talvez pense que essa lista não contém nada capaz de impedir uma reforma política. Afinal, ninguém pode seriamente querer mexer no voto universal ou na liberdade de expressão. Mas não é tão simples assim. Em 1993, o Supremo Tribunal Federal afirmou que tem a última palavra sobre as cláusulas pétreas. Esse poder não tem sido seriamente questionado no Brasil. Quais suas consequências para a reforma política?
Nossa Constituição, tão detalhista e prolixa em muitas áreas, chega a ser tímida em matéria de eleições e partidos, deixando muito espaço para legislação. O pouco que ela diz, porém, vem sendo generosamente interpretado pelo STF. Por exemplo, quando o tribunal derrubou, em 2006, a cláusula de barreira. Para fortalecer o sistema partidário, o Congresso havia aprovado uma regra, inspirada em outros países, que retirava da Câmara os partidos "nanicos"; o STF vetou. Ou quando determinou, em 2008, que a Constituição exige fidelidade partidária.
Essas e outras interpretações judiciais têm desenhado partes importantes do arranjo político que temos no país. E com crescente desenvoltura. Na semana passada, aliás, houve mais um sinal. Discutindo o projeto de lei que diminui o tempo de televisão de partidos pequenos, vários ministros anteciparam sua posição sobre a futura lei: é inconstitucional. Para alguns, violaria inclusive cláusulas pétreas. Na visão do STF, portanto, a Constituição impõe diretamente muitas exigências sobre como deve ser nosso sistema político - das estruturas gerais às mais específicas regras de competição eleitoral.
Claramente, os ministros têm suas próprias ideias sobre como deve funcionar nosso sistema político-eleitoral. Somado ao poder de que dispõem, surge o problema. Quaisquer reformas políticas futuras, mesmo que feitas por emenda constitucional, poderão passar pelo crivo do STF. Serão consideradas violações de cláusulas pétreas? O Tribunal aceitará um sistema diferente do que vem desenhando em suas decisões? Quanto mais o STF quiser detalhar o processo político-eleitoral, por meio de interpretações expansivas de cláusulas pétreas, mais estimulará debates sobre a necessidade de convocação de uma constituinte.
O STF tem sido instituição fundamental para a democracia brasileira. Mas, em uma democracia, os limites da interpretação judicial precisam ser uma pauta permanente. Qualquer que seja o destino da proposta da constituinte, é importante que se continue a discutir os empecilhos institucionais à reforma política no país. O STF precisará decidir se será ou não um desses obstáculos. O Globo
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